Trecho do livro
"It´s not about the bike: My journey back to life"
Lance Armstrong & Sally Jenkins


Antes e depois.

Quero morrer com cem anos de idade, com a bandeira americana em minhas costas e com a estrela do Texas em meu capacete. Quero descer uma montanha dos Alpes, gritando, a 75 milhas por hora, em cima de uma bicicleta. Quero cruzar uma última linha de chegada sob os aplausos da minha mulher e do meu filho e então deitar num daqueles famosos campos de girassóis franceses e morrer elegantemente, a perfeita contradição com o legado pungente que, muito cedo, foi-me antecipado.

Uma morte lenta não é para mim. Não faço nada devagar, nem ao menos respirar. Faço tudo em ritmo acelerado: como rápido e durmo rápido. Fico louco quando minha esposa, Kristin, dirige nosso carro porque ela freia no sinal amarelo enquanto me contorço impaciente no banco de passageiro.

"Vamos lá, não seja medrosa" - digo-lhe.

"Lance" - ela diz - "case-se com um homem".

Passei minha vida correndo de bicicleta, das estradinhas de Austin, Texas, ao Champs-Elysees, e sempre entendi que se eu tivesse uma morte prematura, seria por causa de algum vaqueiro em seu Dodge 4x4, me executando, tranqüilamente, de dentro de uma trincheira. Acredite, isso poderia ter acontecido. Ciclistas travam uma guerra sem fim contra caras em grandes caminhões. Muitos veículos me pegaram e tantas vezes, em tantos países, que até perdi a conta. Aprendi como retirar os pontos do meu próprio corpo: tudo o que você precisa é de um par de alicates de unha e um estômago forte.

Se você me ver sem camisa saberá do que estou falando. Tenho cicatrizes em ambos os braços e marcas coloridas em minhas pernas, que mantenho depiladas, de cima a baixo. Talvez seja por isso que os caminhões estão sempre tentando me atropelar; eles vêem minhas panturrilhas efeminadas e decidem não frear. Mas os ciclistas têm que se depilar porque quando uma pedrinha entra na pele é mais fácil limpá-la e tratá-la se você não tem pêlos.

Num minuto você está na estrada pedalando e no outro... Boom! Você está com a cara no chão. Uma rajada de ar quente te derruba e você sente o gosto amargo de diesel queimado no céu da boca. Tudo o que se pode fazer é gesticular com os punhos para as luzes traseiras que seguem em frente.

Câncer é assim. É como ser derrubado na estrada por um caminhão. E tenho as cicatrizes para provar. Há um corte enrugado na parte alta do meu tórax, um pouco abaixo do coração, que foi por onde o catéter foi introduzido. Um outro corte cirúrgico começa no lado direito da minha virilha, adentrando a parte superior da coxa, de onde extraíram meu testículo. Mas os verdadeiros prêmios são duas meias-luas profundas no meu crânio, como se um cavalo me tivesse dado dois coices na cabeça. São restos de uma cirurgia no cérebro.

Quando eu tinha 25 anos, tive câncer testicular e quase morri. Deram-me menos de 40% de chances de sobreviver e, francamente, alguns dos meus médicos estavam sendo bonzinhos quando deram essa probabilidade. Morte não é exatamente uma conversa de coquetel, sei, e tampouco é o câncer, a cirurgia cerebral ou coisas abaixo da cintura. Mas não estou aqui para falar sobre coisas bonitinhas. Quero contar a verdade. Tenho certeza de que você gostará de saber como Lance Armstrong tornou-se um respeitado cidadão americano e fonte de inspiração para todos nós, como ele venceu o Tour de France, corrida de estrada de 2290 milhas, que é considerado o evento esportivo mais cansativo da face da Terra. Você quer ouvir sobre fé e mistério, meu retorno milagroso e como me juntei a altas personalidades, como Greg LeMond e Miguel Indurain, no livro dos recordes. Você quer saber sobre a subida lírica através dos Alpes, minha conquista heróica dos Pirineus e todo o sentimento sobre isso. Mas o Tour é a última parte da história.

Algo disso não é fácil de se falar ou confortável de se ouvir. Peço-lhe, de início, que ponha de lado suas idéias sobre heróis e milagres porque não sou material para um livro de histórias. Isto não é Disneylândia, ou Hollywood.

Darei um exemplo: li que voei por sobre as colinas e montanhas da França. O problema é que você não voa sobre uma colina. Você luta lenta e dolorosamente na subida da montanha e talvez, se trabalhar muito duro, conquista seu cume primeiro que todo mundo.

Câncer é assim também. Pessoas boas e fortes contraem câncer, fazem todas as coisas certas para derrotá-lo e ainda assim morrem. Essa é a verdade essencial que se aprende. Pessoas morrem. E depois que você aprende isso, todas as outras coisas tornam-se irrelevantes. Elas simplesmente parecem pequeninas.

Não sei porque ainda estou vivo. Posso apenas supor. Tenho uma constituição física rígida e minha profissão me ensinou como competir com baixas probabilidades e grandes obstáculos. Gosto de treinar duro e correr com raça. Isso ajudou. Foi um bom começo, mas certamente não foi o fator determinante. Não ajudarei em nada se acreditar que minha sobrevivência foi apenas uma questão de sorte.

Quando eu estava com 16 anos, fui convidado a fazer um teste num lugar em Dallas chamado "Cooper Clinic", um prestigiado laboratório de pesquisas e o local de nascimento da revolução dos exercícios aeróbicos. Um médico lá mediu meu nível máximo de VO2, que é uma avaliação de quanto oxigênio você pode reter e usar. O médico disse que os meus resultados eram os mais altos que eles já haviam encontrado. Também, eu produzia menos ácido lático que a maioria das pessoas. Ácido lático é um produto químico que seu corpo gera quando lhe falta ar e quando está fatigado. É isso que faz seus pulmões queimarem e doer as pernas.

Basicamente, posso suportar mais cansaço físico que a maioria das pessoas e não fico tão cansado quando estou fazendo isso. Então percebi que isso poderia me ajudar a ganhar a vida. Tive sorte. Nasci com uma capacidade de respirar acima da média. Mas ainda assim, eu estaria sujeito a um nevoeiro de doença.

Minha doença estava me abatendo, revelando-se de forma grave e forçou-me a analisar a vida com uma visão implacável. Há alguns episódios vergonhosos nisso: exemplos de avareza, tarefas inacabadas, fraquezas e lamentações. Tive que me perguntar: "Seu eu viver, quem pretenderei ser?" Descobri que eu tinha muito que crescer como um homem.

Não vou te iludir. Existem dois Lance Armstrongs, o do pré-câncer e o posterior. A pergunta favorita de todos é: "Como o câncer te mudou?" A questão correta é: como ele não me mudaria? Deixei minha casa em 02 de outubro de 1996 como uma pessoa e quando voltei era outra. Eu era um atleta de nível internacional com uma mansão à margem de um rio, chaves para o Porsche e com uma fortuna no banco que eu havia feito. Eu era um dos maiores corredores do mundo e minha carreira estava se movendo em um perfeito arco de sucesso. Retornei uma pessoa diferente, literalmente. De um modo, o velho de mim morreu e eu tinha ganhado uma segunda vida. Até o meu corpo é diferente porque durante a quimioterapia perdi todos os músculos que havia conseguido e, quando os recuperei, não vieram do mesmo modo.

A verdade é que o câncer foi a melhor coisa que já aconteceu comigo. Não sei porque contraí a doença, mas ela fez milagres por mim e eu não fugiria dela. Por que eu iria querer mudar o evento mais importante e construtivo da minha vida?

As pessoas morrem. Essa verdade é tão desanimadora que às vezes não suporto articular sobre isso. Por que devemos seguir em frente? - você deve perguntar. Por que simplesmente não paramos e deitamos onde estamos? Há uma outra verdade também. São verdades iguais, porém contrapostas. As pessoas vivem, e das maneiras mais extraordinárias. Quando eu estava doente, vi mais beleza, triunfo e honestidade em um único dia, do que em qualquer corrida. E aqueles momentos eram humanos, não se tratava de milagre. Conheci um cara com uma roupa gasta e suada que se tornou um brilhante cirurgião. Fiquei amigo de uma enfermeira apressada e ocupada chamada LaTrice, que me deu tanta atenção que aquilo só podia ser resultado da mais profunda simpatia e afeição. Vi crianças sem cílios, sem sobrancelhas, com os cabelos queimados pela quimioterapia e que lutavam com corações de Indurains.

Ainda não entendo completamente.

Tudo o que posso fazer é dizer o que aconteceu.

Naturalmente, eu deveria ter desconfiado que algo estava errado comigo. Mas atletas, especialmente ciclistas, estão na profissão da negação. Você nega toda dor e sofrimento: é necessário para terminar a corrida. É o esporte do auto-abuso. Você fica sobre a bicicleta um dia todo, seis, sete horas, em todos os tipos de tempo, sobre paralelepípedos e pedras, na lama, no vento, na chuva, debaixo de granizo e você não cede ao sofrimento.

Tudo dói. As costas doem, os pés doem, as mãos doem, o pescoço dói, as pernas doem e, claro, a bunda dói.

Então, não prestei muita atenção ao fato de não estar me sentindo bem em 1996. Quando meu testículo direito ficou levemente inchado naquele inverno, eu me disse que deveria viver com aquilo porque presumi que era algo que eu havia feito sobre a bicicleta, ou que meu sistema fisiológico estava se compensando por alguma coisa. Eu estava pedalando forte como sempre, de verdade, e não havia razão para parar.

Ciclismo é um esporte que recompensa campeões adultos. A resistência física do esporte é adquirida com o passar dos anos e o raciocínio para estratégia vem com a experiência. Por volta de 1996 percebi que estava finalmente chegando ao meu auge. Naquela primavera, venci uma prova chamada Fleche-Wallonne, um teste cansativo através dos Ardennes, que nenhum americano havia conquistado antes. Terminei em segundo no Tour Du Pont, 1,225 milhas durante 12 dias pelas montanhas da Carolina. Adicionei mais cinco segundo-lugares àqueles resultados e eu estava prestes a chegar entre os cinco primeiros ciclistas no ranking internacional pela primeira vez na minha carreira.

Mas os fãs do ciclismo perceberam algo estranho quando venci o Tour Du Pont: geralmente, quando venço uma corrida, movimento meus punhos como pistões quando cruzo a linha de chegada. Mas naquele dia eu estava muito exausto para celebrar sobre a bicicleta. Meus olhos estavam vermelhos e meu rosto corado.

Eu estaria confiante e animado com a minha performance na primavera. Em vez disso, estava simplesmente cansado. Meus mamilos estavam feridos. Se eu entendesse melhor, perceberia que era um sinal de doença. Significava que eu tinha um alto nível de HCG, que é um hormônio produzido normalmente por mulher grávida. Homens não tem isso, a quantidade é muito pequena, a não ser que seus testículos o estejam produzindo.

Achei que eu estava apenas desgastado. Dane-se, eu disse, você não pode dar-se ao luxo de estar cansado. A frente, ainda haviam as duas corridas mais importantes da estação: o Tour de France e os Jogos Olímpicos de Atlanta e eles eram tudo para o que eu havia treinado e corrido. Abandonei o Tour de France já no quinto dia. Pedalei durante uma tempestade e peguei uma inflamação na garganta e bronquite. Eu estava tossindo e tinha uma dor na parte baixa das costas. Eu estava simplesmente incapaz de retornar à bicicleta. "Eu não conseguia respirar" - disse à imprensa. Olhando o passado, eram palavras sinistras.

Em Atlanta, meu corpo falhou novamente. Fiquei em 6º no contra-relógio e 12º na prova de estrada, atuações respeitadas, acima de tudo, mas fiquei desapontado pelas altas expectativas.

De volta ao lar, em Austin, achei que estava resfriado. Estava dormindo muito, com a auto-estima dolorosamente em baixa. Ignorei isso. Apaguei isso durante toda aquela estação difícil.

Comemorei meu aniversário em 18 de setembro e, algumas noites depois, convidei amigos, que lotaram minha casa, para uma festa antes de um show de Jimmy Buffett. Alugamos uma máquina de margaritas. Minha mãe, Linda, veio de Plano me visitar e no meio da festa naquela noite eu lhe disse: "sou a pessoa mais feliz desse mundo". Eu amava minha vida. Eu estava namorando uma menina da Universidade do Texas que se chamava Lisa Shields. Tinha acabado de assinar um novo contrato de dois anos com uma prestigiada equipe francesa, Cofidis, por dois milhões e meio de dólares. Minha casa nova era gigantesca. Levou meses para ser construída e cada detalhe da arquitetura e do "design" interior eram exatamente o que eu queria. Era uma casa de estilo mediterrâneo, nas margens do lago Austin, com janelas de vidro altas que davam vistas para uma piscina e um pátio estilo piazza que, por sua vez, desembocava numa doca onde estavam meu próprio jet ski e minha lancha.

Apenas uma coisa estragou aquela noite: no meio do show senti que uma dor de cabeça estava surgindo. Começou com tediosas pontadas. Tomei uma aspirina. Não ajudou. Na realidade, a dor piorou.

Tentei o "Ibuprofen". Agora eu já tinha tomado cinco comprimidos, mas a dor de cabeça apenas se espalhava. Supus que era devido a tantas margaritas e prometi que nunca mais beberia outra. Meu amigo e procurador, Bill Stapleton, deu-me alguns remédios para enxaqueca de sua mulher, Laura, que tinha um frasco em sua bolsa. Tomei três. Também não funcionou.

Agora, pareciam aquelas dores de cabeça que se vêem nos filmes: inclinado sobre os joelhos, as mãos segurando a cabeça, esmagando o cérebro.

Finalmente, desisti e fui embora. Apaguei todas as luzes e deitei-me no sofá, perfeitamente imóvel. A dor não chegou a diminuir, mas eu estava tão exausto com ela e com a tequila, que finalmente adormeci. Quando acordei na manhã seguinte, a dor tinha passado. Conforme me movia pela cozinha, fazendo o café, percebia que minha visão estava um pouco embaçada. As bordas das coisas pareciam suaves. "Devo estar ficando velho", pensei. Talvez precise de óculos.

Tinha uma desculpa para tudo.

Alguns dias depois, eu estava em minha sala falando ao telefone com Bill Stapleton quando tive um ataque de tosse. Deu vontade de vomitar e senti o gosto de algo metálico e ligeiramente salgado no fundo da garganta. "Espere um minuto" - eu disse. "Há algo errado aqui". Corri ao banheiro. Tossi na pia.

Respingou sangue. Fiquei pasmo diante da pia. Tossi novamente e cuspi mais sangue. Não podia acreditar que a massa de sangue e aquele coágulo tinha vindo do meu corpo.

Apavorado, voltei à sala e peguei o telefone. "Bill, te ligo depois". Desliguei e imediatamente telefonei para o meu vizinho, Dr. Rick Parker, um bom amigo que foi meu médico pessoal em Austin. Rick morava perto, abaixo da minha casa.

"Você pode dar um pulo aqui? Estou tossindo sangue".

Enquanto Rick estava a caminho, voltei ao banheiro e olhei o resíduo de sangue na pia. De repente, abri a torneira. Eu quis lavar aquilo. Às vezes faço coisas sem saber os motivos. Eu não queria que Rick visse aquilo. Eu estava embaraçado e queria que aquela coisa fosse embora.

Rick chegou e examinou meu nariz e minha boca. Ele acendeu uma luz no fundo da minha garganta e pediu para ver o sangue. Mostrei-lhe o pouquinho que havia sobrado na pia. Meu Deus, não posso lhe dizer o quanto havia na pia, é muito nojento. O que sobrou não parecia ser muito. Rick estava acostumado a me ouvir reclamar sobre sinusite e alergias. Austin tinha muito pólen e plantinhas que soltam partículas alérgicas. Não importa o quanto torturado estou que não posso tomar remédio por causa do estrito regulamento de doping do ciclismo. Tenho que sofrer as enfermidades.

"Pode estar sangrando por causa da sinusite", Rick disse.

"Beleza" - eu disse. "Não é grande coisa!"

Fiquei muito aliviado. Agarrei a primeira sugestão de que não era sério e ficou assim. Rick apagou a lanterninha e, a caminho da porta, convidou-me a jantar com sua esposa, Jenny, na semana que viria.

Noites após, desci a ladeira a casa dos Parkers numa espécie de Mobilette. Eu sentia uma coisa por brinquedos motorizados e aquela bicicleta com motor era um dos meus favoritos. Mas naquela noite eu estava com tanta dor no testículo direito que quase morri ao sentar-me na motocicleta. Também não pude ficar confortável na mesa de jantar. Tive que me sentar bem direitinho e não ousava me mover, era muito doloroso.

Quase disse a Rick como me sentia, mas eu estava muito consciente. Não era algo apropriado para se dizer no jantar e eu já o havia incomodado uma vez sobre o sangue. Esse cara vai pensar que sou um tipo de lamentador, pensei. Guardei aquilo comigo.

Quando acordei no dia seguinte, meu testículo estava terrivelmente inchado, quase do tamanho de uma laranja. Puxei minha roupa, peguei a bicicleta do rack na garagem e iniciei meu treino, mas percebi que sequer podia sentar no selim. Durante todo o percurso pedalei em pé. Quando voltei de tardezinha, relutantemente, liguei ao Parker novamente.

"Rick", tem algo de errado com o meu testículo" - eu disse. "Está muito inchado e tive que ficar de pé no treino".

Rick disse com severidade: "você precisa fazer um "check up" imediatamente".

Ele insistiu que me pegaria e me levaria a um especialista naquela tarde. Desligamos e ele telefonou para o Dr. Jim Reeves, um conhecido urologista de Austin. Assim que Rick explicou meus sintomas, Reeves disse que eu deveria vir imediatamente. Ele ia deixar uma consulta em aberto. Rick disse que Reeves suspeitava de uma mera torção no testículo, mas que eu deveria ir até lá e checar. Se eu ignorasse, poderia perder o testículo.

Tomei banho, me vesti e agarrei as chaves do Porsche. É engraçado. Posso lembrar exatamente o que vesti: calças cáqui e camisa verde. O consultório de Reeves ficava no coração da cidade, perto do campus da Universidade do Texas, um edifício plano com ladrilhos marrons.

Reeves concentrou-se em se tornar um homem mais velho, tinha uma voz profunda e ressonante que parecia vir do fundo de um poço e um modo médico de fazer tudo parecer rotina, apesar do fato de ele estar seriamente alarmado com o que encontrava enquanto me examinava.

Meu testículo estava três vezes maior que o normal e doía ao toque. Reeves tomou algumas notas e então disse: "isso parece suspeito. Por segurança, vou te mandar do outro lado da rua para fazer um ultra-som."

Coloquei minhas roupas e me dirigi ao carro. O laboratório ficava na transversal da avenida, outro edifício plano com ladrilhos marrons, e decidi ir de carro. Dentro, havia pequenos consultórios e salas repletas de equipamentos médicos complicados. Deitei em outra mesa de exame.

Uma mulher veio me examinar com o ultra-som, um tipo de bastão que projeta uma imagem numa tela. Imaginei que estaria fora dali em alguns minutos. Apenas uma checagem de rotina para que o médico tomasse uma decisão segura.

Uma hora depois, eu ainda estava na mesa. A mulher parecia estar inspecionando cada polegada do meu saco. Eu deitado ali, sem palavras, tentando não estar consciente. Por que estava demorando tanto? Ela havia encontrado algo?

Finalmente, ela abaixou o bastão. Sem dizer uma palavra, ela saiu da sala.

Eu disse - "espere um minuto. Hei!"

Pensei "isso deve ser um mau hábito". Depois de um tempo, ela voltou com um homem que eu havia visto no consultório. Era o radiologista chefe. Ele pegou o bastão e começou a examinar minhas partes. Eu deitado ali enquanto ele me examinava por outros 15 minutos. Por que está demorando tanto, poxa!

"Ok. Você pode se vestir e sair" - ele disse. Atropelei-me nas roupas e o encontrei no salão.

"Precisamos tirar um raio-x do tórax" - ele disse.

Olhei em seus olhos. "Por quê?"

"Dr. Reeves pediu".

Por que eles olhariam meu tórax? Nada dói lá. Fui a outra sala de exame, tirei minhas roupas novamente e um outro técnico iniciou os procedimentos do raio-x.

Agora eu estava ficando nervoso e assustado. Vesti-me novamente e segui ao consultório principal. Desci para o saguão de entrada e vi o radiologista chefe de novo.

"Hei" - eu disse, encurralando o cara. "O que está acontecendo aqui? Isso não é normal."

"Dr. Reeves deve falar com você" - ele disse.

"Não. Quero saber o que está acontecendo".

"Bem, não quero passar sobre o Dr. Reeves, mas parece que, talvez, ele esteja te examinando acerca de alguma atividade cancerígena".

Fiquei perfeitamente imóvel.

"Oh, car..." - eu disse.

"Leve os raios-x ao Dr. Reeves. Ele te espera em seu consultório".

Sentia um friozinho na boca do meu estômago e estava crescendo. Peguei meu celular e digitei o número de Rick.

"Rick, está acontecendo alguma coisa aqui e não estão me dizendo tudo".

"Lance, não sei exatamente o que está acontecendo, mas quero ir com você ao Dr. Reeves. Por que não nos encontramos lá?"

"OK".

Esperei na radiologia enquanto eles preparavam meu raio-x. O radiologista finalmente veio e passou-me às mãos um envelope grande e marrom. Ele disse que Reeves me esperava no consultório. Fiquei olhando aquele envelope. Meu tórax estava lá, percebi.

Isto é mau. Pulei no carro e dei uma espiada no envelope que continha o raio-x do meu peito. O consultório do Dr. Reeves estava a 200 jardas, mas parecia estar mais longe. Parecia duas milhas. Ou 20.

Percorri a curta distância e estacionei. Agora estava escuro e já havia passado do horário de atendimento normal. Se Dr. Reeves tinha me esperado todo esse tempo, é porque havia uma boa razão, pensei. E a razão era que a merda estava prestes a atingir o ventilador.

Conforme eu andava pelo consultório do Dr. Reeves, notava que o prédio estava vazio. Todos se haviam ido e estava escuro lá fora.

Rick chegou com olhar desgostoso. Arquei-me na cadeira enquanto Dr. Reeves abria o envelope e puxava meu raio-x. O raio-x é como o negativo de uma foto: anormalidades aparecem em branco. Imagem preta é boa porque significa que seu organismo está limpo. Preto é bom. Branco é ruim.

Dr. Reeves fixou meu raio-x num tabuleiro luminoso na parede.

Meu tórax se parecia com uma tempestade de neve.

"Bem, a situação é séria" - disse Dr. Reeves. "Parece câncer testicular com grande metástase nos pulmões".

Tenho câncer.

"Tem certeza?" - eu disse.

"Absoluta".

Tenho 25 anos. Por que deveria ter câncer?

"Eu não deveria ter uma segunda opinião?" - eu disse.

"Claro", Dr. Reeves disse. "Você tem todo o direito de fazer isso". Mas devo dizer que estou seguro desse diagnóstico. Marcarei uma cirurgia para amanhã cedo, às sete, para remover o testículo".

Tenho câncer e ele está em meus pulmões.

Dr. Reeves acrescentou detalhes a sua diagnose: câncer testicular é uma doença rara; ocorrem anualmente por volta de 7000 casos, apenas, nos Estados Unidos. A tendência é de a pessoa desenvolvê-lo entre os 18 e os 25 anos e é considerado tratável sem maiores problemas graças aos avanços na quimioterapia, mas diagnóstico e intervenção precoces são a chave do problema. Dr. Reeves estava certo de que eu tinha o câncer. A questão era, exatamente, até onde ele havia se espalhado. Ele recomendou que eu procurasse o Dr. Dudley Youman, um renomado oncologista de Austin. Velocidade era essencial; cada dia contava. Finalmente, Dr. Reeves terminou.

Eu não disse nada.

"Vou deixá-los a sós por um minuto" - Dr. Reeves disse.

Sozinho com Rick, deitei minha cabeça na mesa. "Não consigo acreditar nisso"- falei.

Mas eu tinha que admitir. Eu estava doente. As dores de cabeça, tossindo sangue, a inflamação na garganta, desmaiado na cama dormindo para sempre. Eu tinha uma sensação real de doença.

"Lance, ouça, o tratamento do câncer tem melhorado muito. É curável. Não importa o que aconteça, vamos derrotá-lo. Vamos fazê-lo".

"OK" - eu disse- "OK".

Rick chamou Dr. Reeves.

"O que temos que fazer?" - perguntei. "Vamos continuar com algo. Vamos matar essa coisa. Não importa o que aconteça, vamos fazê-lo" - eu disse.

Eu queria curá-lo instantaneamente, neste momento. Eu passaria por uma cirurgia naquela mesma noite. Eu teria usado uma arma de radiação em mim mesmo se ajudasse. Mas Reeves pacientemente explicou os procedimentos para a manhã seguinte. Eu deveria ir cedo ao hospital para uma bateria de exames. Só então o oncologista poderia determinar a extensão do câncer e fazer a cirurgia de remoção do testículo.

Levantei para ir embora. Eu tinha um monte de telefonemas para fazer e um deles era para minha mãe; de algum modo eu teria que lhe dizer que seu filho único tinha câncer.

Entrei no carro e segui meu caminho. Árvores enfileiradas na rua, em direção ao meu lar às margens do rio. Pela primeira vez em minha vida dirigi devagar.

Estava em choque. Meu Deus, nunca poderei correr novamente. Não, Deus, vou morrer. Não, meu Deus, nunca constituirei uma família. Aqueles pensamentos estavam enterrados em algum lugar na confusão. Mas a primeira coisa era: Oh, Deus, nunca correrei novamente. Peguei o telefone do carro e liguei para Bill Stapleton.

"Bill, tenho notícias realmente ruins".

"O quê? "- ele disse preocupado.

"Estou doente. Minha carreira acabou".

"O quê?"

"Está tudo acabado. Estou doente. Nunca mais vou correr e vou perder tudo".

Desliguei.

Fui levado pelas ruas em primeira marcha, sem energia sequer para pisar no acelerador. Conforme eu ia errante, questionei tudo: meu mundo, minha profissão, eu mesmo. Eu era uma pessoa de 25 anos a prova de bala quando havia deixado a casa. Câncer mudaria tudo para mim, percebi. Não iria apenas sabotar minha carreira. Iria me desprover da completa definição de quem eu era. Comecei sem nada. Minha mãe era secretária em Plano, Texas, mas com a minha bicicleta eu havia me tornado algo. Enquanto outras crianças nadavam no country clube, eu pedalava milhas depois da escola porque eu sabia que essa era a minha chance. Havia galões de suor por trás de cada troféu e dólar que eu tinha ganhado e, agora, o que faria? Quem eu seria se não fosse Lance Armstrong, o ciclista profissional do primeiro time?

Uma pessoa doente.

Meti o carro na garagem. Na casa, o telefone tocava. Segui até a porta, enfiei a chave na fechadura. O telefone continuou tocando. Atendi. Era meu amigo Scott MacEachern, um representante da Nike, designado para trabalhar comigo.

"Hei, Lance, o que está acontecendo?"

"Bem, um monte de coisa" - eu disse irritado. "Muita coisa está acontecendo".

"O que você quer dizer?"

"Eu..."

Eu não havia dito isso alto ainda.

"O quê?"

Abri e fechei minha boca e abri novamente. "Eu tenho câncer" - eu disse.

Comecei a chorar.

E então, naquele momento, algo me ocorreu: posso perder minha vida também, não apenas meu esporte.

Eu poderia perder minha vida.

Tradução livre de Fábio Ribeiro, Sorocaba SP.
Texto original em inglês disponível gratuitamente no link:
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